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6 de agosto de 2010

O conto "Parafuso Frouxo"


      Túlio sentiu a ardência tomar conta dos dedos do pé, um fluxo de eletricidade subir pela perna e correr espinha acima. Recuou o passo sem conseguir conter um grito de dor. Quando o auge da dor se foi, tão rápido quanto aparecera, pode examinar o chão e determinar no que havia batido.
     Franziu a testa; não conseguiu definir, à primeira vista, o que era aquilo. A calçada estava partida e as placas irregulares de cimento, separadas por rachaduras inconstantes, pareciam cercar a coisa marrom. Túlio abaixou-se, massageou o pé por cima do couro do sapato e dessa posição tentou estudar melhor o objeto.
     Era a cabeça fendida de um parafuso, com parte da haste espiralada surgindo de uma placa de metal. Tudo estava tão enferrujado que o parafuso devia estar grudado no metal, mas alguma pancada — talvez a do próprio Túlio — o havia descolado, deixando visível uma fresta escura. O parafuso deveria estar sob a calçada, mas as placas do cimento, pisoteadas por incontáveis transeuntes, haviam afundado ao redor dele.
     Túlio não se deteve em demasia sobre mais um mistério urbano que parecia querer se revelar. Antes, garantiu que não havia se ferido seriamente e continuou seu caminho. Não pode deixar de se sentir um pouco tolo por ter tropeçado; mas já estava um tanto familiarizado com essa sensação em sua vida.
     Enfiou as mãos nos bolsos da jaqueta surrada ao parar numa esquina movimentada. Como sempre fazia, olhou rapidamente para as outras pessoas que também aguardavam o momento de atravessar. Duas adolescentes vestindo uniformes conversavam em voz alta sobre meninos da escola. Um homem de aparência áspera e rude, vestindo calça e jaqueta jeans e uma camisa vermelha, procurou por algo nos bolsos, para em seguida acender um cigarro com os fósforos que encontrou. Uma senhora, de cabelos pintados de preto profundo, presos em um coque impecável, usava saia comprida carmesim, blusa de lã marrom muito puída e um xale de renda amarelado sobre os ombros. Ela notou Túlio observando e sorriu um sorriso solitário, cumprimentando-o com um aceno de cabeça e um piscar dos olhos. Um outro homem, muito pálido e de cabelos marrons, carregava uma bolsa bege que parecia pesada, vestia uniforme composto de sapatos, calças, camiseta e jaqueta também beges, com um cinto verde, uma cor perdida em um labirinto monocromático.
     Quando o sinal abriu, Túlio permaneceu parado. Assistiu aos outros pedestres atravessarem, as duas meninas na frente, apressadas. Sentiu o pé muito quente e latejante, mas a dor havia praticamente passado. Ele estava novamente sozinho com suas outras dores.
     Do outro lado da rua, enxergou as meninas alcançando um grupo de colegas na frente dos portões de uma escola. Atravessou a rua, seguindo adiante. Virou para trás e encontrou apenas o homem de terno, marchando timidamente atrás de si.
     Voltou-se para frente e tudo se foi, apenas mais um episódio concluído.

 

"Parafuso Frouxo" é o sétimo conto do livro, com a estória se passando no presente. O parafuso que faz o protagonista Túlio tropeçar logo no início alterna-se com ele no foco da narrativa. Brotando de uma calçada, a natureza do parafuso é incerta para todos, exceto talvez para Túlio, com quem mostrará ter uma estranha relação.

O conto, conforme se depreende do título, é antes uma exploração da irrealidade do que do concreto. Pode-se dizer mesmo que vai de encontro à realidade material, fundada em convicções e temores que se dissolvem quando um dos fundamentos da natureza humana se comprova: a mortalidade.

Túlio lança-se a uma busca por resoluções, listando os desfechos necessários e os perseguindo. A missão auto-imposta acaba por lhe apresentar a única solução real para sua vida e, se ampliado o escopo, para todas as vidas.

A inspiração do conto foi pessoal, quando dei uma topada com uma porca de uma placa de metal emergindo de uma calçada. No impulso original de escrever, mantive o elemento e dei o título de "A Porca". A ambiguidade infeliz forçou a mudança, levando o título para "Parafuso". Pretendia desde essa primeira mudança que queria fazer uma alusão maior ao tema do texto, usando a palavra, mas só decidi quando da inclusão do texto nesta coletânea.

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